Olha moça, você vem me perguntar como é a minha vida? Eu não tenho mais isso não moça... foi-se o tempo em que eu era viva, em que era alguma coisa.... pode não parecer, mas um dia eu já fui alguém na vida sim. Mas hoje não, eu não tenho mais isso.
Sabe que até é engraçado você me perguntar isso. Eu era tão bonita, minha família tinha dinheiro e eu morava na zona sul. Eu passava e os homens olhavam acompanhando, assobiavam, mexiam comigo. Ai como era bom, eu fingia que eles nem existiam. Minha pele, você tinha que ver como minhas amigas morriam de inveja de tão sedosa que era, eu fazia tratamento estético pra pele toda semana moça, manicure, pedicure, cabeleireiro... nossa era um luxo só. Aquilo sim era vida, motorista pra lá e pra ca, shopping, viagens pra tudo que é lado.
Mas eu era tão idiota, nunca precisei estudar; pra que? Eu tinha tudo o que eu queria. Conheci um rapaz, ele era empresário, bonito, cheiroso, e tinha uma lábia... claro que eu caí feito uma idiota. Casei. Pouco tempo depois ele já tinha tomado tudo o que era meu. Cheguei em casa um dia, quando abri a porta do nosso quarto, tava aquela festa, três mulheres na minha cama... eu fiquei arrasada, chorei, gritei. Saí de casa a base de sopapos e chutes, a casa que era minha e o amor que era meu.
Eu não tinha mais pra onde ir, meus pais já tinham morrido, as amigas não eram realmente amigas, comecei a morar na rua, não tinha onde comer nem onde tomar banho. Os homens que eu fingia não ver, fingiam que não me viam, e comecei a ficar translúcida. O tempo foi me gastando e me sumindo... a minha pele começou a ficar suja, velha, enrugada e cheia dessas doenças de rua... hoje é isso que você vê moça... quem passa hoje nas ruas não me vê, se eu estiver deitada na calçada, passam por cima; se eu estou perto, prendem a respiração. Eu nesse frio com esse cobertor marrom tão fino quanto jornal, quando era gente estaria enrolada no edredon mais confortável e limpo dessa cidade. Mas eu sumi.
Agora fico vendo o tempo passar debaixo desse viaduto, nesse dia frio, enquanto esse povo todo comemora em Copacabana a festa das olimpíadas pra cidade.... o que certamente não mudará em nada minha existência. Dois mil e dezesseis, até lá eu já desapareci completamente minha senhora, você só me vi porque tem um bom coração; mas me deixa mais arrasada quando me pergunta, sobre minha vida. Eu não tenho isso moça, já tive, mas já está indo também; é só questão de tempo nesse lugar que cuida tão bem das vidas quanto desejam o lixo alheio no seu quintal.
Tudo é muito lindo, tudo é festa; praqueles que ainda vivem, como eu, existem muitos mortos e moribundos por aí moça; eu já tive vida... imagina aqueles que já nascem mortos e invisíveis, aqueles que nunca serão enxergados, e que desaparecerão antes mesmo de serem notados. Vou ficando por aqui, pode me deixar... um dia essa chuva me leva e a festa da cidade vai passar sobre meu corpo, o importante mesmo é comemorar... até a morte.