terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Morro da Quizumba - Parte I




Éramos uma família grande, poucos adultos mas muitas crianças. Bons tempos aqueles na favela da Quizumba, a gente não via essas malandragens pelo morro, a gente brincava na rua até tarde, tacava pedra nos telhados dos barracos mais baixos; de vez em quando vinha uma vizinha chata reclamar com nossos pais... a gente se escondia no mato e não tinha perigo dos bandidos pensarem que a gente tava se escondendo deles, a gente brincava de pique esconde na barreira e ficava até altas horas conversando besteira e fazendo zona e gritaria... quase ninguém ligava.
Quando faltava água lá em casa a gente pegava uns baldes bem grandes e uns barris como aqueles de azeitona e, descíamos o morro até o poço, cada um tinha a sua caçamba, e a gente pegava água, subia aquela escadaria toda com o peso na cabeça, com os pesos nos braços. Meus primos e eu passamos toda nossa infância assim, carregando água quando faltava.

Eram cinco casas, a da minha avó na frente, a do tio Geraldo em cima da casa da vó, a da tia Cristina atrás da casa da vó, a minha do lado da casa da vó; a do tio Jaime ficava atrás da minha. Na casa da vó moravam, ela, tia Maria e meu primo Clementino, na casa do tio Geraldo moravam a esposa, e seus quatro filhos, Aninha, Deco, Marta e André; na tia Cris, o marido e seus três filhos, Tainá, Cláudio e Flávio; o tio Jaime era muito misterioso e morava sozinho, todo mundo achava ele muito estranho, lá em casa, além de mim, moravam meus pais e meus quatro irmãos, Bruna, Talita, Rodrigo e Caio.

Eu sei que são muitos nomes e muita coisa pra se lembrar, no morro tinha um posto de saúde que até funcionava, e tinha uma enfermeira enorme e ignorante que falava que pobre se multiplicava que nem rato.
As bocas de fumo do Quizumba ficavam muito no alto do morro; a gente sempre via aqueles carros de rico subindo, uns mauricinhos subindo... só gente da grana, claro que iriam comprar porcaria, mas as coisas parecem que se modernizaram, agora eles podem continuar no asfalto que as drogas chegam a eles em esquema "delivery". Eu era o mais novo na minha casa, e quando tinha cerca de oito anos, uma das bocas de fumo se mudou pra frente da minha casa, era muito estranho e muito novo aquilo tudo, quando saía pra escola, tinha que passar no meio deles, mas minha mãe dizia pra eu passar sem falar nada e nem ficar olhando, mas pra não ter medo. Dizia que se me oferecessem alguma coisa, pra eu negar. De manhã cedo ficavam amarrando umas trouxinhas com um pozinho branco dentro, tinha um que parecia mandar mais, andava com uma bolsinha cheia de dinheiro. E era na minha porta que os mauricinhos e companhia vinham comprar as porcarias.

Meus pais e meus tios ficaram desesperados, porque nós tínhamos que passar no meio da bandidagem, era certo da polícia bater lá qualquer hora, e que casas seriam invadidas?! As nossas, que ficavam mais perto da boca.
O Deco sempre teve a cabeça meio fraca, era o mais velho dos primos, e gostava da vida fácil, detestava trabalhar, e estudar nem se fala. Ou seja, como quem trabalhava duro, andava com roupa velha e, quem ficava vendendo porcaria andava muito bem vestido e tinha o que queria, inclusive mulher, o Deco se bandeou pro lado deles. Quase que o Tio Geraldo morreu de desgosto, aliás, a família inteira. O Deco ficou amigo do chefão do morro, um tal de "Cicatriz", e depois influenciou o Cláudio pro mesmo caminho. Estiveram muito bem durante alguns meses, até que a bandidagem do morro vizinho, Morro do Caramujo, invadiu nosso morro... foi a pior coisa que poderia ter acontecido com a gente.